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30.10.2023
Perspectiva de gênero é levada em consideração para manter ex-mulher na administração da empresa do ex-casal
A Vara Regional Empresarial de Porto Alegre decidiu pela improcedência de uma ação de destituição de administrador de sociedade movida pelo ex-marido contra a sua ex-mulher. Ela exercia a administração de empresa de área farmacêutica, da qual ambos detinham as cotas de forma igualitária, desde 2019, em razão de decisão vinda do processo de divórcio que resultou no afastamento do ex-marido da posição.
O homem buscava a nomeação de um administrador judicial para ou exercer o cargo no lugar dela, ou fiscalizar os seus atos, sob alegações de que a gestão estaria sendo conduzida de forma temerária e de que ela não estaria lhe dando acesso aos dados contábeis e aos lucros que entendia devidos.
Em sua defesa, a mulher informou que o ex-marido, enquanto exercia a gestão, realizou diversas transações e contraiu compromissos que comprometeram a saúde financeira da sociedade, fatores que motivaram o seu afastamento, ainda na ação de divórcio, e que, atualmente, continuam onerando a operação.
A decisão de improcedência julgou com base na perspectiva de gênero, critério estabelecido pela Resolução nº 492/23 do CNJ. Observou o julgador que, em que pese ambos possuam igualdade de cotas (50% cada um), o conflito societário girava em torno de outro conflito, originário da relação familiar discutida na ação de divórcio. Diante de toda a peculiaridade do caso – litígio entre ex-marido e ex-mulher e a interferência das emoções e do poder familiar no âmbito empresarial – é que se adentrou à questão de gênero mencionada.
A resolução, publicada em março deste ano, prevê a utilização do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, também do CNJ, como diretriz e guia nas decisões judiciais, e é originária de movimentos e documentos nacionais e internacionais relevantes quanto ao tema, que [...] buscam superar e modificar padrões socioculturais, com vistas a alcançar a superação de costumes que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos, nas palavras do magistrado.
Publicado em 2021, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero é fruto do amadurecimento institucional do Poder Judiciário, que passa a reconhecer a influência que as desigualdades históricas, sociais, culturais e políticas a que estão submetidas as mulheres ao longo da história exercem na produção e aplicação do direito e, a partir disso, identifica a necessidade de criar uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas. Com mais de 100 páginas, o documento é um guia que provoca uma reflexão nos magistrados sobre as adversidades que enfrentam as mulheres nos mais variados cenários jurídicos e assim busca trazer mais sensibilidade nas suas decisões, de modo a realizar o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas.
No âmbito da partilha de bens, que foi tida como aplicável ao processo em debate, o Protocolo assim dispõe: Na partilha dos bens, a ideia preconceituosa e equivocada acerca da divisão sexual do trabalho, na qual homens são sempre os provedores e as mulheres cuidadoras, pode acarretar distorções indesejáveis. Sendo as mulheres “incapazes” de performar no mundo dos negócios, durante o desenvolvimento do litígio, muitas vezes pode-se acreditar na impossibilidade de gerir aluguéis, de ter participação nos lucros em sociedades empresariais ou mesmo de administrá-las.
Como bem sinalizou o magistrado, tanto o Código Civil quanto a Lei de Sociedades Anônimas não fazem distinção de gênero, impondo àquele que exerce o cargo de administrador os deveres de diligência e lealdade, sem maiores alteridades. Nesse contexto, entendeu que o conjunto de provas demonstrava que a ex-mulher vinha desempenhando o cargo com diligência, cumprindo suas obrigações – diferentemente do alegado pelo ex-marido – e alcançando, inclusive, melhora na situação financeira da empresa, recuperando os prejuízos por ele deixados.
Para o julgador, ficou evidente que a pluralidade de alegações estão eivadas de importante carga de natureza emocional, mas também com as questões de gênero que lhe são inerentes, e com a ajuda da análise dos autos de divórcio, que revelou um conturbado processo de separação, envolvendo, inclusive, medidas protetivas da Lei Maria da Penha, observou a tentativa de tumultuar a atuação da ré, de forma a vê-la afastada da gestão, sublinhando que não se percebia do ex-marido qualquer interesse no êxito da empresa e, sim, somente o seu desejo pessoal de conservar uma postura antagonista contra ela.
O que se entende a partir dessa decisão é que o judiciário tem amadurecido e se voltado para as questões gênero e, preocupado com o espaço que a mulher ocupa na sociedade e com as sequelas das desigualdades que ela sofreu e ainda sofre, tem buscado direcionar as suas decisões para um olhar que acompanha os mais atuais tratados e entendimentos internacionais no que diz respeito à adoção de protocolos oficiais que buscam reduzir o impacto, muitas vezes desproporcional, da aplicação das leis sobre determinadas situações.
Por evidente, não é somente a perspectiva de gênero que deverá nortear o fundamento da decisão, mas sim o acervo probatório conforme o exame do caso específico, que, no caso, indicava que a ex-mulher realizava a administração diligente da empresa, inclusive com a melhora dos indicadores financeiros.
Nesse caso, que, em princípio, trataria de uma discussão no campo societário com contornos familiares – em razão do divórcio dos únicos sócios –, com a aplicação da nova resolução do CNJ, levou também em consideração a posição da mulher diante do ex-marido, a configuração da relação familiar, o histórico conturbado que motivou a separação, que teria sido rodeado de abusos por parte dele, permitindo concluir que o processo estaria sendo utilizado como instrumento de opressão à figura feminina da relação e às preconcepções que a ela são atribuídas, sem a apresentação de qualquer prova que justificasse as alegações do autor.
Inegável dizer que podemos esperar novidades nas decisões judiciais daqui em diante.
Com informações do TJ/RS.
Maiara Oliveira Paloschi
Advogada ZNA
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